21 de out. de 2009

Artigo: O Pré-Conceito entre mulheres e futebol

Por Carol Gonzaga - O time feminino de futebol do Brasil foi o que restou para nos honrar a camisa amarela nas últimas Olimpíadas de Beijing, na China. O brasão cravado com as cinco estrelas brilhantemente conquistadas ao longo da história do futebol masculino parece agora reluzir nos peitos volumosos e bem torneados das garotas brasileiras. Ao time masculino, a glória e os pontos insuficientes para as semifinais, às meninas o descaso e o não reconhecimento dão lugar à medalha de prata, que emocionou o cidadão brasileiro, já desacreditado no esporte do seu país.

Além da falta de apoio, patrocínio e crença, as jogadoras da Confederação Brasileira de Futebol precisam conviver com os inúmeros preconceitos que rondam o futebol feminino na “província” que chamamos de Brasil. Tal subdesenvolvimento cultural sugere os atrasos ainda sofridos por esta nação; países como a Alemanha, Estados Unidos e Argentina, instruídos de forma a desmistificar as barreiras da diversidade, já possuem competições voltadas ao público GLBTS (gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e simpatizantes) livres de repressões ou censuras midiáticas ou culturais. Em 2007 a Federação Internacional de Futebol (Fifa) apoiou o Campeonato Mundial de Futebol Gay e Lésbico realizado em Buenos Aires, na Argentina. A cidade foi escolhida por ser considerada a cidade mais gay-friendly (freqüentada pelo público gay e simpatizante) da América Latina, a primeira a legalizar uniões entre pessoas do mesmo sexo. O Brasil não participou do evento. De acordo com Cláudio Nascimento, da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT), as entidades que representam o futebol no País sequer cogitaram a possibilidade de escalar uma seleção para o campeonato. O único time brasileiro formado por jogadores gays, o Roza Futebol Clube, do Rio de Janeiro, foi extinto há pouco tempo, no ano passado, por falta de patrocínio e verba. A morte do presidente do clube, Raimundo Pereira, o maior incentivador do grupo, fez o Roza perder força. Sem dinheiro, o uniforme do time sumiu e, com ele, os convites para os jogos. O time ainda seguiu se reunindo semanalmente e organizando jogos, inclusive, entre gays e heteros; mas aos poucos os encontros reduziram-se a uma vez por mês. A separação e os desencontros foram inevitáveis.

Com o intuito de fortalecer a Copa do Mundo Gay, criou-se há aproximadamente três décadas a Associação Internacional de Futebol Gay e Lésbico (IGLFA, na sigla em inglês), fundada para ser um braço representativo do segmento no esporte. O intuito da organização é aliar a prática esportiva à bandeira da diversidade e quebrar paradigmas sociais. Para participar é preciso ter mais de 18 anos e não há necessidade de comprovação sobre orientação sexual. Há autorização para mulheres jogarem em times masculinos, mas o inverso não é permitido.
Segundo Tomás Gómez, da IGLFA, pouca gente entende "o espírito e o entusiasmo de protagonizar um evento que pode ser tão competitivo quanto divertido". Para ele a homofobia existe em todos os esportes: “ser gay não interfere na prática de qualquer atividade esportiva. Ser gay é uma identidade sexual e não uma limitação”.

Para o treinador do time de futebol feminino do Avaí, Diogo Fernandes da Rosa Otacílio, a falta de competições é a maior dificuldade dos times femininos do estado. “Não tendo campeonatos a disputar, não haverá investidores e muito menos divulgação”, explica ele. Em Santa Catarina, aconteceu recentemente a segunda edição do campeonato estadual feminino. A adesão dos outros municípios é tão escassa que no primeiro ano a competição desportiva contou com a participação de apenas cinco times em todo o estado. “Os homens ganham dinheiro para treinar diariamente, e as mulheres, na maioria dos clubes, trabalham durante o dia e treinam à noite pelo simples prazer do esporte”, conta Daiana Kieling (29), atacante reserva do time feminino do Avaí Esporte Clube. Além da falta de espaço e presteza na organização de atividades que envolvam o futebol feminino em Santa Catarina e Florianópolis “o problema é que, além do desânimo que assola as jogadoras por causa do preconceito, há sempre aquelas promessas de que vai haver incentivo, que a CBF vai ajudar, e nada acontece”, desabafa Fernanda Cristina da Rosa Silva (22), goleira do time feminino do Avaí. “Na verdade, a CBF não está nem aí pra seleção feminina, porque ela não dá dinheiro como o time masculino”, completa.

“As mulheres sofrem menos represálias quando assumem a homossexualidade no futebol”, afirma João Carlos Balduíno, o “Badu”, ex-jogador do Avaí, atual comentarista esportivo da Rádio Guarujá; e completa “os homens quando assumem a postura gay são instantaneamente dizimados do clube e posteriormente do esporte”. Não há algo declarado quanto ao preconceito, explica ele, mas o esporte futebol, o espetáculo da bola rolando no campo, ainda é dominado por uma organização predominantemente machista.

Segundo a psicóloga e mestranda em comportamento humano pela Universidade de São Paulo (USP), Luciana Sales, a mulher é duplamente analisada quando decide defender a vontade de jogar futebol. Primeiramente por ser mulher em uma sociedade machista, cultural e historicamente patriarcal e, sob outra ótica, porque o fato de ver uma mulher de camiseta, short e chuteiras ao competir com força, presteza e rapidez foge do conceito feminino e frágil criado para a figura da mulher nos últimos cem anos.

“Na maioria das vezes não há discriminação quanto à possível homossexualidade da jogadora. Em uma sociedade moderna, poucos se importam realmente com a vida pessoal da atleta fora dos gramados”, define a psicóloga. “O grande estigma carregado pelo futebol feminino é o pré-conceito (conceito formado antecipadamente, sem prévio conhecimento do indivíduo ou do objeto) com as roupas pouco atraentes utilizadas pelas jogadoras e a escolha pelo futebol. Não há um preconceito declarado, de ordem sexual, o que existe é uma associação do inconsciente da masculinidade arraigada ao esporte futebol”, conclui.

A atacante Daiana afirma já ter sofrido represália da família quando decidiu ingressar no futebol amador. “Meu pai nunca gostou muito que eu jogasse futebol”, confirma a jogadora que apesar da tentativa da família de fazê-la voltar a praticar vôlei, esporte que praticou durante quatro anos, optou pelo futebol. “Acredito que o preconceito ainda ronde o futebol feminino pelo fato de algumas meninas perderem a feminilidade”, opina a atleta. Segundo ela, o Brasil ainda deve levar alguns anos para evoluir nesse sentido comportamental e que indiferentemente da opção sexual, o país pode ter as melhores jogadoras do mundo.

Para o comentarista esportivo e ex-técnico de diversos times brasileiros Rui Guimarães, o grande responsável pela ligação do futebol feminino ao lesbianismo dá-se pela postura adotada por algumas figuras da modalidade pelo mundo. “A masculinidade retratada nos cabelos, nas roupas e até na fala de jogadoras de futebol que se dizem resolvidamente heterossexuais denigrem a imagem do homossexualismo”. Na concepção do comentarista, o “travestimento” implantado por algumas atletas é desnecessário e acaba se tornando aliado à criação de rótulos que geram repulsa quando se fala de homossexualidade.

Em uma pesquisa realizada em abril de 2006, pelo Professor Jorge Dorfman, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, foi apontado que o preconceito é a principal causa de problemas emocionais em jogadoras de futebol. No estudo, fruto da defesa de seu doutorado, o professor analisou 33 atletas que disputavam o Campeonato Paulista de Futebol – algumas delas integrantes da equipe que participou dos Jogos Olímpicos de Atenas. Entre as atletas mais novas, que tinham entre 16 e 21 anos, mais da metade (57,14%) afirmaram que o maior causador do estresse no futebol era o preconceito. Entre as entrevistadas dos 22 aos 27 anos, a porcentagem diminui, mas ainda é relevante, 50% delas confirma sofrer esporadicamente algum tipo de preconceito sexual.

Apesar da aliança dourada na mão esquerda, que permanece no dedo também nos dias de jogos, Karla Vieira Amorim (30), lateral esquerdo do Avaí, diz que imagina que as pessoas realmente devem comentar a respeito da vida pessoal das jogadoras fora de campo. “Essa é uma atitude imatura, de pessoas que se sentem no direito de invadir a vida alheia. Acima de qualquer opção que uma mulher jogadora de futebol possa ter, o que importa é o papel dela dentro do esporte, representando com garra o seu time”, cita Karla. “Sou uma mãe de família, com marido e filho. Considero minha família um exemplo a ser seguido; e não me sinto menos mulher ou menos mãe por sair do trabalho e ir treinar”, explica a atleta que apesar de não poder ter participado do Estadual este ano, pois estava se recuperando da cesária da filha Laura, voltou a treinar quando a pequena estava com dois meses.

A questão da discriminação sobre as jogadoras que aparentam ser homossexuais também foi estudada por Dorfman e citada pelo site Cidade do Futebol do Portal UOL de entretenimento. “Existe dentro do esporte uma ‘polícia’ do gênero”, explica o autor da pesquisa. “Ocorre uma forte normatização do comportamento das mulheres, que se verifica, por exemplo, no preconceito com aquelas que aparentam mais fortemente a homossexualidade”. Assim como a psicóloga Luciana Sales, o professor defende a idéia de que a aparência física tem ligação direta com os conceitos criados pela mente de quem observa.

Para o treinador Diogo, o preconceito aparece quando a mulher demonstra qualquer interesse por este esporte. “Se já não parte de casa, elas ouvem de amigos ou conhecidos que futebol é um esporte para homens”, afirma. “Depois vem o pior dos preconceitos, o de ordem sexual, no qual todas as mulheres que jogam são taxadas de ‘sapatão’”. Diogo acredita que com mais atenção e divulgação do trabalho feito com seriedade pela Seleção Brasileira Feminina, haja alguma contribuição para a diminuição do preconceito, tanto racial quanto sexual.

De forma inusitada e contundente, o Presidente da FIFA, Joseph Blatter, em entrevista ao jornal inglês The Times, desmistificou o machismo existente no esporte bretão e afirmou que existem homossexuais no futebol. O mais importante cartola do futebol fez um apelo aos jogadores homossexuais para que assumam a sua orientação sexual. As declarações polemizaram a crítica machista do esporte, e colunistas pelo Brasil arriscaram escrever em seus periódicos que a sugestão do mestre da FIFA seria apenas uma forma amistosa e diplomática de demonstrar o lado democrático do esporte no Brasil e no mundo. Democracia questionável, pois quem detém os poderes do futebol no Brasil e no mundo continuam sendo os homens.

Por Carol Gonzaga

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